quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Domingo eu preguei - A competência do Pai sobre os tempos, e a nossa sobre o testemunho


Quem já viajou de carro com crianças já teve a experiência de ouvir ad infinitum perguntas como: "Já estamos chegando?"; "Já chegou?"; "Já está perto?". Essa ansiedade é compreensível pela vontade de se verem livres dos cintos e do carro. Porém, essa curioso anseio sobre o tempo de chegada é completamente inútil. Não mudará em nada o trajeto estabelecido, não adiantarão nem tardarão a viagem, apenas tornam as horas mais difíceis de suportar.
O Novo Testamento por vezes compara os crentes com meninos (1 Coríntios 3.1; Efésios 4.14; Hebreus 5.11-13), mostrando que existem casos de atraso no amadurecimento proposto na vida cristã. Esse crescimento não provém do acúmulo de conhecimento teológico, ainda que esteja associado a ele. Creio que a maturidade cristã tem a ver com o equilíbrio que encontramos entre nossa vida com seus desafios nesse mundo, e a confiança depositada na Palavra. 
No último domingo de 2015, expus Atos 1. 6-11, considerando precisamente o antídoto para a meninice de alguns travestido de ansiedade. Como crianças em uma longa viajem de carro, somos tentados a pensar que, de conformidade com nossas projeções, podemos apressar a vinda do Senhor. Todos anos, previsões feitas por otimismo ingênuo, ou por superstições, tomam conta dos dias que antecedem o 31 de dezembro.
Nesse início de seu segundo volume, Lucas vinha falando resumidamente dos últimos dias do Senhor junto aos discípulos sobre a terra (v.1-2). Sua morte e ressurreição foram reafirmadas, e num período de pelo menos 40 dias o Senhor esteve junto deles, tratando de assuntos concernentes ao Reino (v.3). Uma importante ordem é dada então: Que eles não se ausentassem de Jerusalém, mas esperassem até o cumprimento da promessa do Pai, reproduzida pelo próprio Cristo: Os discípulos receberiam o batismo com o Espírito muito em breve (v.4-5).  
Nesse contexto os discípulos o perguntam no versículo 6 sobre o tempo da restauração do reino á Israel, o que, na resposta de Jesus, nos dá a competência do Pai e de seus discípulos: Os tempos pertencem a autoridade de Deus, e a nós a responsabilidade de testemunharmos do Senhor até os confins, até que Ele venha.

1. O que concerne a Deus. A Pergunta trazida a tona reflete um pouco de imaturidade ainda vigente entre os discípulos. Sabemos que o anseio messiânico dos judeus era a restauração do Reino a Israel. Suas projeções os lançavam aos dias do rei Davi, sua glória e poder. Acreditavam portanto que a promessa do Pai os remeteria ao domínio político que um dia existiu. Não posso responder pelo que pensou Jesus, mas sua resposta inicialmente áspera me faz imaginar que não ficou muito satisfeito com o teor da pergunta. Creio que o problema não era tanto a questão do "quando", uma vez que os discípulos já o haviam arguido quanto a sua manifestação (Mateus 24.3; Lucas 21.7), mas a insistência de pensar que Israel estava no centro da promessa do Pai.
A resposta de Jesus a primeira instância nos remete a Deuteronômio 29.29, sobre as coisas não reveladas que pertencem a Deus. Apesar de não negar objetivamente a "restauração do reino a Israel", Jesus deixa claro que o conhecimento de tempos e épocas (chronos e kairós) é reservado  ao Pai por sua exclusiva autoridade. Somos instados nessa resposta a nos recolhermos ao nosso lugar, sabendo que isso não nos compete, mas ao Pai, que detêm, exclusivamente, o conhecimento concernente o tempo e as ocasiões específicas. Muitos se aventuraram ao longo da história da Igreja em tentativas frustradas de prever a vinda de Cristo, ou até mesmo de indicar outros acontecimentos futuros. Esses falsos profetas levaram milhares ao engano, e até hoje arrastam muitos com suas previsões pretensiosas. Essas previsões, quase sempre triunfalistas, criam todo fim de ano expectativas falsas, que caso não seja substituído pela frustração da realidade, são seguidas por uma alienação cada vez maior.Jesus nos advertiu que a estes não podemos seguir (Mateus 24.4-5, 11, 23-26).

2. O que concerne a nós. Mas, graciosamente, o Senhor nos fala com maior precisão sobre a promessa que os discípulos deviam esperar em Jerusalém (v.4). Enquanto o Pai tem exclusiva autoridade (exousia - regência ou domínio), os discípulos receberiam poder (dunamis - força ou habilidade) oriundo do Espírito. Esse poder não é nosso, mas derivado da terceira pessoa da Trindade. O poder alcançado na descido do Espírito sobre eles faria deles testemunhas de Jesus. As implicações disso são distorcidas por muitos nos movimentos pentecostais. O poder e o testemunho de Cristo têm a sua fonte na pessoa do Espírito Santo. O descer do Espírito sobre os discípulos é a promessa do Batismo com o Espírito. Essa promessa do Pai, é ratificada e executada pelo Filho não é uma segunda benção, exclusiva para alguns crentes que buscam mais o Espírito. Assim como João batizou com água, o Cristo batiza com o Espírito, todos os crentes, em cumprimento da promessa do Pai, para o propósito de seu testemunho. Desta sorte, todo crente verdadeiramente nascido de novo, pela obra regenerativa do Espírito (João 3.6) é, a partir do Pentecostes em Atos 2, capacitado pelo mesmo Espírito para ser testemunha (martusde Jesus. Esse é o propósito estabelecido no batismo com o Espírito, a capacitação dos crentes no testemunho (martureo) do seu Senhor (João 15.26-27).

3. Até onde e quando? Enquanto a preocupação dos discípulos era a restauração do Reino à Israel, tem este como o fim, ao menos político, a resposta de Jesus agora nos conduz a um outro alvo temporal: os confins da terra. Jerusalém, a cidade de Davi, onde, das portas para fora (Hebreus 13. 12-14), o Filho de Deus sofreu nossa morte, não era a linha de chegada, mas o ponto de partida. As quatro referências dadas aqui (Jerusalém, Judéia, Samaria, até aos confins da terra) tem seu cumprimento ao longo do livro de Atos (capítulos 2, 8, 10, 19). Mas nesse caso, me chama atenção que os "confins da terra" não é uma localização precisa, mas até onde o evangelho precisa chegar, sendo então todo lugar. A perspectiva do Reino não é domiciliar de uma nação, ou de um povo, mas dos quatro cantos da terra (Apocalipse 7.9). É necessária nossa compreensão disso para não reduzirmos a Igreja a nossa perspectiva, ou tempo. O testemunho de Cristo, que é o evangelho, perfaz a expansão do Reino anunciado. Essa compreensão, histórica e cultural, serve para desfazer qualquer pretensão pessoal no sucesso do crescimento da Igreja de Cristo. A Igreja cresce ao longo dos séculos, nas mais inóspitas sociedades, pelo exclusivo poder do Espírito que transforma homens perdidos, como aqueles discípulos "ensimesmados" em testemunhas de Jesus.
Mas existe um tempo estabelecido para que essa expansão chegue ao seu limite. Ao ser assunto aos céus, os que testemunhavam este evento extraordinário ficaram, naturalmente, perplexos, mesmo após Jesus ser oculto em uma nuvem. Não sei se tinham a expectativa de o verem novamente naquele instante, ou o quê; fato é que anjos surgem para anunciar-lhes que Ele voltaria da mesma forma que partiu, a vista de todos os olhos. Assim como em sua anunciação, nascimento, tentação, paixão e ressurreição, os mensageiros celestes de Deus surgem para falar aos homens sobre Jesus, lembrando-os que Ele voltaria aqui. Não convinha que os discípulos ficassem ali, com torcicolo, a espera de um retorno imediato. Eles tinham o que fazer em Jerusalém, e depois além. Deviam saber sim, que aquele de quem testemunhariam voltará um dia, mas que não antes de se cumprirem suas Palavras quanto ao Fim dos tempos. Pedro nos fala em esperar e apressar a vinda de Cristo (2Pedro 3.12), o que significa não somente o aguardo simples, mas o forte anseio sobre isso. Isso reorienta nossas prioridades, tendo o Reino e sua Justiça em primeiro lugar na ordem de nossas vidas (Mateus 6.33). Especulações infundadas sobre o retorno de Cristo, contribui contra a anunciação do seu Reino, uma vez que confunde aquilo que nos foi revelado na Palavra, com o que pressupões os supersticiosos que desejam fundar seus próprios reinos.

Portanto, devemos ter em mente o que nos foi anunciado sobre a volta de Jesus, mas ao mesmo tempo nossas mãos, pés, e, principalmente, bocas, na proclamação do evangelho. Essa é a nossa competência. Confiar que o Reino estabelecido pelo nosso Senhor, maior que nossas expectativas, tem sua manifestação final e total a seu tempo é um exercício de fé e esperança. Todavia, em nosso tempo, em todo tempo, em dias maus, como os do ano de 2015, ou em nebulosos, como serão os de 2016, devemos nos apresentar como testemunhas de Cristo, capacitados pela pessoa do Espírito que habita em nós, e dá poder para tanto.
Finalizo assim esse texto com as duas últimas estrofes e o coro do Hino 105 do Hinário Novo Cântico - A Certeza do Crente:

Não sei o que de mau ou bem/ é destinado a mim;
Se maus ou áureos dias vêm,/ até da vida o fim.

Não sei se ainda longe está,/ ou muito perto vem,
A hora em que Jesus virá,/ na glória que Ele tem.

Mas eu sei em quem tenho crido,/ e estou bem certo que é poderoso!
Guardará, pois, o meu tesouro,/ até ao dia final.

Deus assim abençoe seus discípulos verdadeiros no ano de 2016, como tem abençoado a toda sua Igreja ao longo dos séculos, até a sua consumação.     

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

O Verbo Encarnado não é o Verbo Encenado


O Verbo Eterno que se encarnou tem alguns concorrentes em sua celebração natalícia. Os homens dividem a atenção entre o Filho de Deus e o "Bom Velhinho". Entre Belém e o Polo Norte. Os pastores e anjos são substituídos por renas e duendes. Os presentes entregues ao menino (ainda que esse evento tenha se dado um bom tempo após seu nascimento) dão lugar aos presentes de amigo oculto. É natural que os homens que amam as trevas ao invés da Luz se deslumbrem com outro enredo distante das Escrituras. Isso vem de longa data, e não se restringe ao Natal, mas é visível na Páscoa, na concorrência entre o "Coelho" e o Cordeiro de Deus.
Mas, seria possível que igrejas históricas também substituíssem a mensagem das Escrituras por encenações e cantatas, ainda que contando a história de Jesus? Infelizmente sim. Sem precisar invocar Papai Noel, ou qualquer outro artifício do comércio natalino, sempre que uma igreja substitui a exposição das Escrituras por encenações artísticas, nega-se o âmago do Natal:
E o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória, glória como do Unigênito do Pai. (João 1.14)
Não sou contra o teatro em si. Acho válido enquanto recurso didático. Particularmente sou fã dos autos católicos enquanto matéria prima artística, pois são capazes de cativar a audiência e transmitir com simplicidade sua mensagem. Obviamente sou contrário à mensagem desses autos, uma vez que não correspondem a fé bíblica. Com isso, porém, quero pontuar que reconheço uma certa utilidade no teatro, pelo menos para o ensino. O que não reconheço a luz das Escrituras, é o seu lugar no culto público.
O Senhor Jesus nunca fez uso de dramatização em sua proclamação do evangelho. Mesmo após a ressurreição, quando andou com os discípulos no caminho de Emaús, valeu-se das Escrituras para expor-lhes o que havia acontecido (Lucas 24.25-27). Os apóstolos após sua assunção ao céu também não usaram outro dispositivo além das pregações. Na história da Igreja não se viu isso nem na apóstata Roma. A Reforma fez por onde limpar o culto, saindo de uma missa ininteligível, para o serviço a Deus por meio da centralidade da Palavra. E agora o teatro toma lugar do púlpito, o drama rouba a cena da Exposição bíblica. Por que?
Não ouso julgar os corações de todos os que se prestam a esse papel (literalmente), pois sei que, a exemplo dos fariseus, eles podem ter zelo, mas sem entendimento (Romanos 10.2). O que me arrisco a fazer são três observações do que motiva alguns crentes no presente século, filosófica e literalmente falando.

  1. A Exposição das Escrituras não é suficiente. Já faz tempo que se ouve dizer que alguns recursos tem maior alcance que a Palavra exposta pela pregação. Dizia-se no fim do século passado que a música podia chegar a lugares onde a pregação não chegaria. Evidentemente a música tornou-se insuficiente, pois hoje acrescenta-se outras manifestações artísticas, tais como danças e encenações. Em suma, não se confia plenamente no método bíblico de proclamação do evangelho, aquele usando pelos profetas, Jesus e seus discípulos. Na melhor das hipóteses a exposição das Escrituras precisa ser acrescida de recursos que se comuniquem mais com os olhos do que com os ouvidos, isso, quando a pregação não é totalmente substituída.
  2. Há confusão entre dons e talentos. Muitas pessoas querem de alguma forma servir ao Reino, mas não buscam descobrir os dons bíblicos para tanto. No afã de serem relevantes, imaginam que teatro, dança e música são dons que servem a proclamação da Palavra, e que assim podem dividir espaço com o púlpito no culto público. Talentos não são transformados em dons espirituais pelo simples uso no contexto da igreja. Podemos dar o exemplo de uma pessoa que cozinha bem, e que pode servir aos irmãos em um acampamento ou jantar, mas que nem por isso faz com que a boa culinária seja um dom espiritual. Para um bom entendimento sobre esse tema, sugiro a leitura do artigo do pastor David Merkh, nesse link aqui.
  3. A reverência no culto tem sido abandonada. Nos movimentos neopentecostais criou-se a "adoração extravagante" onde se expressa a insatisfação com o culto restrito a Palavra, sacramentos, cânticos e orações. É triste que algumas igrejas históricas se deixem contaminar por esse impulso de "adorar a Deus" como lhes parece melhor. O Princípio Regulador do culto tem sido esquecido, e para muitos é um ensino completamente estranho à vida da igreja. No entendimento destes, não é Deus pela sua Palavra que institui a maneira como deve ser adorado, mas o "adorador", que acha que qualquer coisa "sincera" que lhe brote ao coração serve como culto. Mesmo sem usar imagens de escultura, quebram o segundo mandamento (Êxodo 20.4). 
Uma vez que se extrapola a mensagem bíblica para além da exposição da Palavra, e cada um promove seu próprio talento a dom, para servir segundo seu bel prazer, o culto torna-se um espetáculo (as vezes, literalmente falando). Ainda que a história de Jesus esteja sendo contada, textos encenados e músicas entoadas em um teatro ou cantata não podem substituir a Pregação da Palavra. Que toda criação é o teatro da glória de Deus, isso é fato. Mas, a dramatização do evangelho instituída no culto se dá pela proeminência da Palavra Encarnada, exposta nas Escrituras, e Proclamada do Púlpito, pelo pregador que nada mais é que o instrumento designado por Deus para tanto.
Toda honra, glória, louvor e poder neste drama, pertencem ao Senhor e Salvador de nossas almas. Não cabe aos servos se apossarem de um ato sequer deste drama, mas apenas servi-lo em gratidão e obediência. No culto, em oração, somos instados ao arrependimento e a confissão dos nossos pecados. Somos também convidados para louvar a Deus por toda sua Providência em Cristo Jesus. Os sacramentos são sinais externos da graça de Deus depositada na vida dos crentes, instituídos por Jesus, que, em outras palavras, são meios de graça que edificam a Igreja. Todos estes atos são permeados pela Palavra, porém, é justamente pela sua Exposição nas Escrituras que Deus nos fala com graça e verdade a respeito de seu Filho, desde sua encarnação, vida, morte e ressurreição. E nele que podemos ver atentamente a glória do Unigênito do Pai. A centralidade da Palavra no culto é a manifestação da glória do Filho de Deus, e sua habitação em definitivo conosco. As Escrituras é que testificam a seu respeito (João 5.39), e a pregação é o instrumento escolhido por Deus para sua exposição (2 Timóteo 4.2). Não temos autorização nem razão para substituirmos ou acrescentarmos ao púlpito nenhum outro recurso. Aqueles que o fazem, em maior ou menor escala, estão se rendendo ao antropocentrismo vigentes em muitas igrejas que já esqueceram a autoridade bíblica em sua vida e no culto público. Sejamos encontrados fiéis despenseiros tanto no conteúdo como na forma de anunciarmos a Jesus em tudo, desde o seu nascimento, vida, morte e ressurreição.