terça-feira, 24 de janeiro de 2012

O Demônio da Verdade.

É patrocinado pela turma do movimento de batalha espiritual a ideia de que os demônios têm suas ações específicas. Com nomenclatura própria (nunca ouvi falar que demônios teria RG ou CPF), os demônios se especializaram em certas ações tais como imoralidade sexual (Pomba Gira); doenças (Exu Caveira); problemas financeiros (Tranca Rua); vícios (Zé Pilintra)... e por ai vai. É claro que nao há respaldo bíblico para todo esse pensamento animista, mas é interessante pensarmos em um demônio a respeito do qual Atos nos fala, e que poderia ser chamados de Demônio da Verdade.
Em Atos 16. 16-18, na cidade de Filipos, Paulo e seus companheiros se deparam com uma jovem escrava possessa de um espírito de Píton, que servia como adivinha, e que por isso dava grandes lucros aos seus senhores. Diz o texto que todos os dias que eles iam para o lugar de oração, esta jovem os acompanhava dizendo: Estes homens, que nos anunciam o caminho da salvação, são servos do Deus Altíssimo. Nada podia ser mais verdadeiro que as palavras dessa moça. Mas Paulo, voltando-se para o espírito e o expele da jovem pelo nome de Jesus. É certo que ela ficou liberta, pois nunca mais deu lucro aos seus senhores. Isso causou grande tumulto, e acarretou na prisão de Paulo e Silas.
Mas porque o Apóstolo Paulo tomou uma atitude tão drástica uma vez que as palavras do espírito eram verdadeiras? Para entendermos é preciso de um pouco de contexto cultural, bíblico e teológico.
Na mitologia grega (que naqueles dias não era entendida como mito, mas religião) Píton era uma serpente gigantesca que foi morta por Apolo. Ela cuidava do oráculo de Delfos, de onde se podia fazer prognósticos. Sendo assim, alguém que previa o futuro era tido como pitonisa, vidente, e portanto, de grande valor para aqueles que quisessem lucrar em jogos de azar. Mas, pensando assim, segundo a mitologia grega, e, reconhecendo nesse texto a afirmação de que a jovem tinha um espírito de Píton, não estariam os profetas da batalha espiritual corretos? Por isso o texto sem contexto, serve sempre de pretexto.
Devemos lembrar que a ação de Satanás e seus anjos é sempre limitada pelo poder e propósito de Deus. Não se tratam de seres autônomos (e quem o é?) que tudo fazem conforme a sua própria deliberação. Em Jó podemos observar Satanás servindo aos propósitos de Deus imaginando-se livre. Todavia sua "liberdade" é condicionada aos limites impostos por Deus (Jó 1.11, 12; 2.5, 6). É Deus quem ao mesmo tempo atiça e impõe limites para Satanás agir na vida de Jó para cumprir o Seu propósito (Jó 42.1-6). O próprio Deus envia um espírito maligno para atormentar Saul (1 Samuel 16.23); e também de mentira para enganar Acabe (1 Reis 22. 19-23). E ainda mais contundente com o texto em questão é o paradigma de Deuteronômio 13.1-3:
Quando profeta ou sonhador se levantar no meio de ti e te anunciar um sinal ou prodígio,
e suceder o tal sinal ou prodígio de que te houver falado, e disser: Vamos após outros deuses, que não conheceste, e sirvamo-los,
não ouvirás as palavras desse profeta ou sonhador; porquanto o SENHOR, vosso Deus, vos prova, para saber se amais o SENHOR, vosso Deus, de todo o vosso coração e de toda a vossa alma.  
Era previsto que alguém que se achegasse aos israelitas e fizesse sinal ou previsão, que uma vez confirmada, e dissesse vamos após outros deus, que serviria isso de armadilha para desviar o povo do seu culto ao verdadeiro Deus. Numa perspectiva escatológica, é exatamente isso que fará a Besta que emerge da terra (Apocalipse 13. 11-14). Logo, a menina possessa de Píton, em última instância serve ao propósito de Deus de provar o seu povo. Não estou negando a possessão demoníaca, apenas ajustando-a a ortodoxia bíblica, de que a jovem não estava ali por acaso, nem simplesmente a mercê de seus senhores (Satanás inclusive). Os sinais por ela operados ali podiam enganar os gentios, mas não o povo de Deus. Logo, os sinais de premonição podiam ser autênticos, ela de fato podia prever o futuro, mas por determinação divina, e não por algum poder satânico intrínseco. O espírito de Píton não era senão mais um escravo de Deus, como o próprio Satanás o é.
É necessário considerar ainda, teologicamente falando, a intolerância de Paulo para com a palavra propagada pela moça. Afinal, a verdade é a verdade, e nada do que a escrava dizia era mentira. Todavia, sendo sua fonte imunda, que a muitos escravizava no engano, o apóstolo não podia admitir tal associação. Se num momento a pitonisa se presta ao engano com seus prognósticos, teria o espírito que nela estava mudado de ideia? É certo que não. Seria como misturar as palavras em seus propósitos.
Quando Jesus chega a Gadara e encontra ali um possesso de Legião (pois eram muitos demônios), e este o adorou chamando-o de Filho do Altíssimo, nem por isso ele aceitou aquela "adoração" (Marcos 5.1-17). As semelhanças entre os dois textos não são coincidência. Paulo, assim como Jesus, repele o demônio pois ainda que dizendo a verdade, ele não pode ser fonte para nada que senão o engano. Também assim como Jesus, o Apóstolo causa prejuízo financeiro àqueles que lucravam com o pecado. Satanás não tem outro propósito que não este: enganar, roubar e matar desde o princípio (João 8.44). A mentira é algo que lhe é própria, e por isso mesmo, quando diz a verdade, sua real intenção é confundir.
Não se pode aceitar nenhuma outra fonte de testemunho confiável senão a do Espírito da Verdade (João 16.13). E seu modus operandis são as Escrituras. Diante da abordagem da possessa, Paulo está deixando claro que nenhum reconhecimento outro lhes serve a não ser a Palavra de Deus. E a pena para aqueles que se aventurarem a cruzar este procedimento é a expulsão.
Aplicando aos nossos dias, é visível (e audível) muitos espíritos de Píton, que até dizem a verdade, mas que não são fontes confiáveis. São emissoras de TV que abraçam o movimento gospel, filosofias de auto-ajuda que falam em nome do amor, religiões antropocêntricas que se propõe a salvar, e muitos outros que se prestam como o espírito da pitonisa a afirmarem alguma ou outra verdade. Mas em seu todo, tem servido a mentira da Antiga Serpente.
Em algum momento todos precisam dizer a verdade, até porque a mentira não subsiste sem a ela. O engano precisa do que é verdadeiro para em certo ponto ganhar confiança, e só depois desviar-se para o seu propósito. Portanto, não basta que se diga alguma verdade, é necessário que proceda da Verdade, do Espírito da Verdade que nos conduz a toda verdade.

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